Não acreditava no que os meus olhos me diziam, por isso servi-me dos meus sonhos, descobri o que já sabia, e aprendi uma nova maneira de voar...

terça-feira, dezembro 28, 2004

A minha luz e a minha sombra - Nós

Vi o reflexo no espelho. Quem era aquele? Aproximei-me. O ambiente estava pesado à minha volta. Uma luz morna iluminava o aposento, que possuía numa das suas paredes um grande espelho que o preenchia. Nada escapava ao seu olhar penetrante. Nada se conseguia olvidar àquela verdade tão irrefutável como irreal. Tão transparente como difusa. Tão enganadora como real.
Aproximei-me suavemente e aquele outro que era eu aproximou-se também. Afastei-me e ele afastou-se também. Ri-me. Finalmente tinha o poder de ordenar e ser obedecido sem questões ou hesitar. No entanto, eu sabia que ninguém me obedecia menos e tão literalmente ao contrário como aquela figura no espelho.
Aproximei-me mais e observei com um olhar crítico o rapaz. Por um momento fugaz desejei-o. Desejei ser como ele. Desejei ter aqueles olhos penetrantes, aquele cabelo suave, aquele corpo docemente curvilíneo, aquele lábios curvados e sensuais e aquela postura digna e confiante. O momento passou e eu voltei a olhar. E voltando a olhar, penetrei-lhe nos olhos e já não desejei ser como ele. Os olhos eram misteriosos, mas opacos, eram penetrantes, mas estavam envoltos num manto negro de solidão, eram inteligentes, mas viam demais, brilhavam, mas eram ingénuos, eram belos, mas eram tristes.
Deparado com o que não compreendia, ou talvez com o que compreendesse demasiado bem, desviei o olhar.
A música começou a soar.
Animei-me.
Comecei a cantar, sem ouvir as palavras que me saiam dos lábios. Deixei-me banhar naquela música comercial, com fraca sonoridade e melodia, mas libertadora aos meus ouvidos. As palavras que me soavam dos lábios e que eu não ouvia, da música que me soava aos ouvidos e que eu ouvia, cantavam a realidade sem a serem.
E aí o espelho voltou a mostrar o reflexo daquele outro que era eu.
E ele cantava. E cantando gritava a verdade. Gritava a verdade que soava aos meus ouvidos que não o ouvia. Exaltava a realidade aos meus olhos que sonhavam. Mostrava o que era a mim que não o era. Eu tentei evitá-lo mas ele não me largou. E continuou a berrar-me aquela verdade que eu não ouvia. E continuou-me a mostrar aqueles olhos que eu não via. E aquele que não era real, persistiu em continuar a mostrar-me o que era. Enquanto eu existisse ele ali permaneceria, mesmo que eu o tentasse afastar ele não ia, tal como uma sombra persistente que na sua negrura nos faz ver a luz. A sua voz que eu não ouvia e os seus olhos que eu não via, gritavam uma mensagem ao meu coração que eu não compreendia. Ou talvez compreendesse demasiado bem. Mas a mensagem não passava. Ficava retida no bloqueio do meu cérebro que se esforçava por a contrariar. Por ignorar aquele outro que desejava e que era eu. Esse bloqueio que ocultava o brilho e sufocava a felicidade. Esse bloqueio que era o que não era, e nesse caso existia, prendia-me a liberdade e debitava palavras com sentido que soavam sem alguma vez terem realmente chegado a soar.
Aquele outro eu tentou forçar o bloqueio. Uma, duas, três, quatro, cinco, cem vezes! Sem nunca desistir.
E aí a luz apagou-se e com ela o seu devaneio louco de lucidez daquele outro que era eu.
Porque nada existe sem a luz.
Apenas as trevas.

E do nada as trevas soltaram-se, como uma corda que não pode esticar mais e se corrói a cada milésimo de segundo, que vai rebentando, chicoteando, vibrando e levando o ar à sua frente, fazendo o vento assobiar baixinho e estalar por fim num corpo, numa parede, no nada que reside à frente. Os gritos instalaram-se da forma louca que instala a demência dentro de alguém, a voz não parava de apregoar a verdade... Qual verdade meu deus? Qual é a verdade que tanto me querem ensinar que eu não posso aprender em livros, em manuais alguns que haja perdidos em baús cheios de pó, que a vida não me pode dar porque eu sou uma alma perdida em mim, sou um farol que engoliu a sua própria luz, uma supernova de emoções catastróficas que se fundem...
Adeus, penso eu de forma exacta e sincronizada com o lento bater do meu coração, adeus mundo insignificante que ninguém quer explicar ou tentar compreender, qual verdade que está exposta nas caras dos dias e noites que passam, alguém me ajuda a fugir?
Não quero enfrentar as trevas que se soltam, que da sua prisão se libertam e me perseguem, mas elas correm sem fim atrás de mim, no meu encalço quase que as sinto bafejar-me a nuca, sinto o calor das suas mãos frias, tão frias que me queimam o corpo quando por vezes me tocam... Sinto tanto frio... Meu Deus... Pára!
Não vou pertencer meramente à sombra que tu representas só porque és a imagem que eu sempre quis ser, não vou cair nas armadilhas mais simples só porque julgas que eu caminho sem destino certo, como se a minha vida fosse uma floresta com nevoeiro, onde eu alma perdida tento de forma desesperada, encontrar um caminho de volta para casa.
Casa... Onde fica a minha casa, onde fica verdadeiramente o sítio onde eu posso olhar-me de volta e não sentir o peso da alma negra que me come por dentro? Talvez não exista um lugar assim...Talvez eu sonhe demais com a paz e ignore a guerra que dentro de mim se agita como um frasquinho de um qualquer composto explosivo...

Quero correr, não me agarres, cala-te e deixa a verdade que tu queres vender, deixa-a morrer no frio da geada da floresta que dizes que eu percorro, fica por aí, apodrece e morre na pobreza da tua perfeita imagem, eu não quero... Não quero... Não vou e não gosto de ti, não sou proporcional, não tiro fotografias perfeitas, não sei sorrir e não sei chorar... Só sei estar aqui e aproveitar os meus sentidos. Larga-me depressa e volta para o sítio de onde vieste, como um bicho assustado que foge da luz do Sol, deixa-me sofrer também... Deixa-me que aprenda a chorar sem ter de te imitar só porque tu fazes assim... Vai-te embora e não voltes a olhar-me nos olhos, não espreites... Não existas... Não me tortures mais... Por favor...

Tu és o outro lado do espelho, eu nunca sei bem onde estou quando tu apareces... Qual é o teu lado? Quando me falas dessa forma e me fazes sentir tão irreal, qual de nós é a realidade e qual de nós é a fantasia, qual de nós é o que chora de verdade e sendo assim... Qual de nós imita quem? Eu sou a Sombra, pelo menos é o que tu me chamas quando vens triste chorar para os meus lados, eu sou a imagem reconfortante que encontras do outro lado do espelho quando decides espreitar... Sou o sorriso à noite e a cara feia de manhã...
Onde tu existes... Eu existo, sem saber bem porquê ou como, basta-me saber que ainda assim, as tuas verdades não me servem… Vou saltar para onde se tu constantemente tentas saltar para aqui quando falas sozinho ao espelho? Quando agarras as tuas lágrimas que se reflectem na ilusão de que está ali mais alguém... Eu não sou nada, sou a sombra que nunca existiu, sou a verdade que ninguém consegue falar... Sou o outro lado do espelho, sou imitação... Cópia, alternativa, dissimulação e ilusão.
Tu és a vida e o sangue que corre nas veias, o cabelo agitado ao vento e a mão que percorre as paredes com a ponta dos dedos.
Eu... Sou apenas a sombra que te persegue e assombra.Sou as tuas trevas e tu a luz que foge de mim.