Não acreditava no que os meus olhos me diziam, por isso servi-me dos meus sonhos, descobri o que já sabia, e aprendi uma nova maneira de voar...

quarta-feira, outubro 05, 2005

Folhetim nº 4 – A história de Zé Ro – A Infância

O puto crescia raquítico e patético e no dia em que o pai percebeu que já assinava correctamente o seu nome, entregou-lhe a escrita da casa. Não era contabilidade complicada de fazer! O pai não fazia nenhum, a mãe vivia parasitariamente dos rendimentos do pai e as contas resumiam-se à soma dos calotes que os dois acumulavam no café da esquina. Era um equilíbrio orçamental complicado de alcançar mas o hábito de viver na miséria e o rendimento mínimo garantido iam equilibrando a balança de pagamentos. Está bom de ver que, com esta escola, o puto haveria de se fazer alguém na vida, talvez conseguisse mesmo entrar para a repartição de Finanças ou, mas isso era sonhar alto demais, para a caixa de um banco.

E sempre que tinha algum problema grave, a partir desse momento, era a ele que o pai recorria até porque a mãe ou estava tão alcoolizada que nem falar conseguia ou a aviar um cliente no barraco e não podia ser incomodada enquanto trabalhava. “Puto onde é que estão as cuecas?”, “puto quando é que se come cá em casa?” ou “puto dá-me o dinheiro todo que conseguiste gamar porque estou com sede, senão parto-te a fuça seu deficiente!” eram questões e pedidos frequentes a que o puto respondia com toda a diligência na esperança de manter o enorme orgulho do pai e de não levar uma punhada nos cornos.

Percebemos agora melhor o espaço próprio que esta criança alcançava naquela casa, que era um espaço pequeno ainda, normalmente à volta do fogão, mas era um espaço em crescimento, no trabalho e na responsabilidade já que se o trabalho não fosse feito por ele, era chamado à responsabilidade.

Esta é a forma certa de crescer, como dizia o génio, o carácter forma-se a partir da deformação do corpo. E nisso, como em tudo o resto, o pai era um educador responsável, que deixava a formação do carácter para a escola e a deformação do corpo para casa, num espírito de cooperação que haveria de moldar a personalidade deste jovem. E o puto lá ia ajudando no que podia para que os seus pais tivessem uma vida mais descansada. Porque ele compreendia bem, apesar da juventude, que estar desempregado há quase três anos cansava muito o pai e por isso entendia que ele passasse mais tempo a dormir do que a beber cerveja.

O quotidiano do puto não diferia muito do de uma criança qualquer neste nosso país à beira mar plantado. Levantava-se por volta das quatro da manhã com o regurgitar do pai e diligentemente ia despejar o penico para que aquele pudesse continuar a exercitar os abdominais; ia depois, por volta das seis, mendigar pão para a porta da Ti Maria Padeira que já o esperava com o pão duro do dia anterior e, por último, ia às traseiras do café do Ti João e do lixo tirava as borras mais frescas para o café. Regressava a casa pelas seis e meia e fazia o pequeno-almoço para si, pão seco com café, e para os pais, duas cervejinhas geladas e um pires de tremoços. Em dias especiais ainda dançava o fandango à frente do pé do pai.

Lavava-se rapidamente porque o pai tinha-lhe ensinado que muita água fazia mal à saúde e depois de ter arrumado a casa e colocar em ordem a fila de clientes da mãe, seguia para a escola.

A tarde não diferia, mais uma vez, do quotidiano de uma criança de seis anos. Regressava da escola ainda muito a tempo de preparar o jantar enquanto os pais descansavam de um dia duro. E enquanto o puto mexia nas panelas, punha a mesa e aspirava a casa, os seus pais tinham discussões sexuais na varanda. Eram uma família feliz!